domingo, 9 de agosto de 2009

3. Carl Rogers, o patético. Empatético, peripatético.

Creio que é muito necessário, e até urgente, e fundamental, compreender e definir o sentido do lo-gos metódico do modelo de Carl Rogers como eminentemente patético. Creio que ele, Carl Rogers, muito apreciaria ser desta forma entendido. Na ver-dade, creio que, pela compreensão de uma patética podemos compreender o sentido essencial do logos metódico do modelo de Carl Rogers, esclarecê-lo e desdobrá-lo. De resto, o que não é pouco, estaremos compreendendo iguais qualidades da psicologia e da psicoterapia fenomenológico existencial.
Eu, por certo, não utilizaria termos possivel-mente chocantes para o senso comum, se não estivesse convencido do profundo interesse, neste sentido, de sua utilização.
Naturalmente que alguma operação de limpeza e de esclarecimento precisa ser feita, acerca destes termos, antes de prosseguirmos no argumento. Limpeza, certamente. Porque nenhuma palavra, tal-vez, tenha sido tão pesadamente torcida e distorcida, difamada e degradada quanto à palavra pathos. Na cultura contemporânea, o termo pathos lembra a condição de um rei destronado, em des-graça. Pathos, na verdade, expressa o modo de sermos, no qual vigoram, em seus plenos e efetivos poderes, eminentemente ativos, o afetivo, a emoção, o corpo, o sentido, os sentidos; o vivido, no sentido da vida vivida em sua imediaticidade. Pré-conceitual, pré-reflexiva, não teórica, não prática, não técnica, não comportamental, poiética. Caracteriza o que Buber chamou de modo de ser eu-tu; a vivência que Heideg-ger chamou de ser-no-mundo; a dimensão de ser que Dilthey caracterizou como vivido, vivência.
Ou seja, esse modo de sermos da ‘vida vivida em sua imediaticidade aparescente’, existencialmen-te fenomenal, ativa e criativa, potente de possível. Modo diverso do modo de sermos no qual vigoram a mediação do conceitual, da teoria, da moral, do ci-entífico, do técnico, do prático, do comportamento, da memória, da história.
Esse modo pático de sermos. Que, nas suas tonalidades de embriagues, mais se configura como um drible de corpo na consciência. Do que plena e lú-cida consciência. Dionisiacamente, sempre, mais uma tomada de inconsciência, do que uma tomada de consciência.
Este modo de sermos, fundamental, impres-cindível, ontológico e ontogênico. No qual subpercebemos propriamente, vivemos em sua quali-dade própria, o possível, a possibilidade. E acolhemos e acalentamos a sua potencialização, o seu desdo-bramento, e ato ação. Este modo de sermos que é prerrogativa ontológica nossa de mergulho no Ser, na potência, no eterno retorno da força. Existencial-mente, momento de uma ins-pir-ação. Meramente porque nele, e só nele, o possível, a possibilidade da superação, que qualificam o humano, são possíveis e se desdobram.
Estas são qualidades do pathos, enquanto modo humano de ser. E o sentido de uma ética, um modo de proceder, que o privilegia. O sentido de uma pathética. Path Ética. Ou seja, de uma ética que privilegia as qualidades de um modo páthico de ser.

Pois bem. Na medida em que o corpo foi des-qualificado, no decorrer do desenvolvimento socrático-platônico da civilização ocidental; na me-dida em que o possível e a força, a potência, foram abominados, o pathos, que é corpo ativo, e morada e agência do possível, a dimensão do possível que constitui o nosso ser, e de sua atualização, o pathos foi, igual e concomitantemente abominado. A pala-vra (pathos), o conceito, este modo de sermos, foram virulentamente assacados, massacrados, torcidos e distorcidos, difamados, degenerados... Até represen-tarem, e intensa e predominantemente conotarem, o sentido de doença, na concepção de patologia. Ou de “doença” mental, em sua mais soturna apropriação pelo ressentimento, na expressão psicopatologia*...
Foi necessário o Humanismo da filosofia eu-ropéia do Século XIX, na sua volta ao Renascimento e à antiguidade grega; foi necessário Nietzsche, e a Fenomenologia, para resgatar o sentido e o valor do corpo, do vivido e dos sentidos. Para resgatar o va-lor do pathos, e de uma path-ética. Para que se pudesse afirmar e resgatar o pathos, o modo de ser da vivência pática, como um valor.
Até que se pudesse entender que este modo pático de ser faz parte de nosso ser, faz parte de nos-sa saúde, e é, não só, a fonte desta saúde, como a fonte de nosso ser. Fonte seminal de geração e rege-neração de nós mesmos, e do mundo que nos diz respeito. Aos quais podemos criar e recriar, gerar e regenerar, na medida em que aceitamos e integra-mos, em que afirmamos, em que vivenciamos na sua propriedade o nosso modo páthico de ser. Que, de resto, só pode ser extinto muito depois que esti-vermos, nós mesmos, extintos. Isto por um motivo muito simples, e comum a todos nós: somos seres do possível, e é especificamente nesse modo páthico de ser que o possível é possível, e se desdobra.
Na verdade, é a restrição, em nossa vida, des-se modo páthico, o seu sufocamento, na reiteração excludente dos ditames e limites da hegemonia da consciência lúcida, calculativa, asséptica, repetitiva, medíocre, obsessiva; a restrição e sufocamento do páthico na hegemonia do limite, do individual e da individualidade, que é a base para o que metafori-camente podemos chamar de “doença”, num sentido existencial, e para todos os distúrbios somá-ticos que podem daí decorrer.

Patéticos sempre houve. Aqueles que enten-diam a loucura da interdição de nosso modo páthico de ser, imolado no altar da vontade de abstração, da racionalidade conceitual, da abstração do corpo e dos sentidos da vida vivida em sua imediaticidade. Vontade que mal se escondia e se esconde como má vontade para com tudo que é vivo, e que de vida palpita. Patéticos que assumiram uma ética do pathos. Ou seja, um modo de proceder que não exclui a a-firmação do pathos, do páthico. Que na verdade o privilegia como modo ontológico de sermos.
Os pré socráticos, que privilegiavam o corpo, o vivido e os sentidos, assumiam uma perspectiva de privilegiamento do pathos. A escola filosófica de Aristóteles ficou conhecida como escola dos peripaté-ticos.
Normalmente, quando se indaga o que signi-fica termo peripatético, responde-se, apressada e sumariamente, que ele designa o fato de que os filó-sofos desta escola filosofavam andando. Daí, diz-se, este termo como designação (!?).
Esta “explicação” sumária deixa de fora o sentido maior. De que, à medida que se caminha, a abstração mental, a mente reflexiva, conceitual e cal-culativa, cede progressivamente lugar ao modo de ser de uma vivência pática. A mente reflexiva cede lugar a uma acentuação do pathos. De modo que o que os filósofos peri-path-éticos buscavam era esta acentuação do pathos, e a filosofação a partir desta vi-vência acentuada do pathos.
Patéticos, então, na medida em que assumiam uma ética, um modo de proceder, que privilegiava o pathos, a vivência páhtica, enquanto método de filoso-fação.
Mais que isso, peri path éticos, na medida em que não apenas privilegiavam a vivência páthica como método, mas assumiam uma atitude ativa de afirmação, e ativo mergulho, no modo pático de ser como estilo de filosofação. Uma querência pelo risco e pela tentativa poiética de atualização de seus pos-síveis. Daí também o sentido de ex-peri-mentação, num sentido fenomenológico existencial.
Aristóteles, seus colegas e discípulos, eram, assim, peripatéticos. E propriamente pode-se, assim, dizer que fizeram escola. Não só patéticos, como pe-ripatéticos, o foram também, dentre outros, Brentano, Nietzsche, o Expressionismo e os expressionistas, Heidegger...
De modo que quando descobriram como mé-todo não só a path ética, mas, em específico, a peri path ética, como modo privilegiado de ser, para o te-rapeuta e para o cliente, os psicoterapeutas fenomenológico existenciais, como Carl Rogers e F. Perls, não só não estavam sendo exatamente origi-nais, como estavam em muito boa companhia...
Começou lentamente, com a qualitativa con-tribuição de C. G. Jung e de Otto Rank, e Sandor Ferenczi, que entenderam que a psicoterapia não ti-nha a ver com o tecnicismo inerente a um modelo objetivista, o modelo médico, em particular, que preconizava a intervenção de um sujeito, o psicote-rapeuta, sobre um objeto, paciente. Evoluiu com as mudanças paradigmáticas dos psicoterapeutas fe-nomenológico existenciais europeus, como M. Boss e L. Binswanger, e os psicoterapeutas relacionais, que enfatizavam a imediaticidade da relação inter humana como elemento fundamental do processo terapêutico. Até desaguar nos modelos peripatéticos das abordagens de Carl Rogers e de Fritz Perls. Ambos preconizando, e buscando criar condições para o, patético mergulho ex-peri-mental do cliente, mergulho efetivamente peripatético, como recurso fundamental do logos metódico de seus modelos.
Concomitantemente, vale observar que, a preconização de uma vivência peripatética para o cli-ente, a partir dos vetores de sua atualidade e atualização existenciais (e não de uma experiência moralista, científica, técnica ou teorizante), como re-curso fundamental de método psicoterapêutico e psicológico, é acompanhada por igual prescrição de disposição metodológica para o terapeuta. Uma disposição fenomenológico existencial experimental, peripathética, como disposição metodológica hábil a facilitar e a potencializar a vivência e desdobramen-to da vivência do cliente.
Não podemos dizer que Carl Rogers tivesse, ao tempo de sua morte, uma articulação teórica, ou consciência plenas, do alcance de suas intuições pe-ripatéticas. Mas podemos certamente dizer que é ele que vai mais longe na preconização e na prática da vivência peripatética como logos metódico de uma abordagem de psicologia e de psicoterapia.
Muito particularmente, em especial, porque ninguém certamente, como Rogers, percebeu, e am-plamente exercitou, de um modo preponderantemente empírico, o poder pático, o po-der de propiciamento peripático do grupo, como ambiência terapêutica, de trabalho psicológico e de crescimento humano. A vivência do processo gru-pal, e de seus desdobramentos vivenciais, como ambiência propícia para a vivência peripatética, e su-as implicações, como modo de ser no âmbito dialógico no qual o possível é possível e se desdo-bra.
Se podemos dizer que Rogers não tinha uma consciência plena, e, em particular, uma articulação teórica cabal, do alcance de suas intuições, não po-demos deixar de ressaltar que, desde o início, suas intuições eram neste sentido distintas. O que se con-figura muito claramente a partir do momento em que ele passa a falar de empatia – em-pathia. E que Empatia, especificamente, significa “dentro do pa-thos”.
Como formulador de uma abordagem de psi-cologia e de psicoterapia, Rogers opera um verdadeiro striptease de concepção e método, em di-reção a uma preconização da vivência pática como ambiência e recurso psicoterapêutico. Preconização amplamente protagonizada experimental e empiri-camente por ele próprio, seja ao nível da vivência da prática da psicoterapia individual, seja ao nível da vivência grupal.
Rogers vai abrindo mão, enquanto psicólogo, enquanto psicoterapeuta, e enquanto facilitador de grupo -- e libertando o cliente --, de uma concepção e de uma prática técnicas, de uma concepção e de uma prática científicas, de uma concepção e de uma prática moralistas, de uma concepção e de uma prá-tica realistas. Como característica de prática e de concepção de si próprio enquanto psicólogo, psico-terapeuta, e enquanto facilitador de grupo.
Rogers vai abrindo mão de um desempenho moralista, de um desempenho técnico, de um de-sempenho reflexivo, de um desempenho científico, ou cientificamente assentado, e mesmo desempenho prático, em direção ao privilegiamento de uma vi-vência páthica, de uma path-ética, em-pathética, na verdade peripathética. Nem teoria nem prática, na verdade uma poiética.
Não é outro o reconhecimento que ele faz do valor de saúde no exercício da liberdade experiencial, da avaliação organísmica da experiência. De resto já preconizadas por F. Nietzsche.
Rogers evoluiu decidida e alegremente no sentido de um modelo que se esmerava em criar condições para que o cliente pudesse dar-se aos in-fluxos de sua experiência organísmica, aos influxos dos poderes de sua atualização e avaliação organís-micas, no âmbito de uma vivência páthica. Isto é o que podemos entender como uma patética. Peripathé-tica.
O Rogers que encontramos na segunda me-tade da década de setenta, até o final de sua vida, é um Rogers imerso no privilegiamento da vivência peripatética no contexto da vivência grupal.
Evidentemente que existe em Rogers uma consideração substancial sobre o método do tera-peuta, sobre o seu modo de ser e de proceder na criação das condições para que a vivência páthica do cliente possa ser privilegiada. E, na verdade, o que Rogers propõe, no essencial, como modo de ser do terapeuta e do facilitador de grupos, é o modo de ser da vivência páthica, empáhtica. Rogers propõe, em essência, um terapeuta, um facilitador de grupos, em-páticos. Que privilegiem se situar, nos melhores momentos de vivência de seu logos metódico, dentro de sua vivência páthica, como modo de ser do tera-peuta e do facilitador de grupo. Modo de ser este que pode potencializar a vivência páthica do cliente e dos membros do grupo, o modo próprio à atuali-zação de seus possíveis.
Patético, Empatético, Peripatético, é o modo de ser privilegiado pelo terapeuta e pelo facilitador de grupo que adota o modelo rogeriano, seguindo o ca-ráter e o estilo patético, Empatético e peripatético de seu preconizador.
Foi ousado, muito ousado, Carl Rogers, a-brindo mão dos sisudos referenciais da ciência de antanho, dos poderes e pseudo poderes que esta fa-culta, dos poderes que permitem a postura técnica, a postura teorizante, a postura moralista, e mesmo e em especial, os valores da prática --, mesmo sem ver claramente o outro lado da travessia.
Hoje, podemos claramente entender que a ci-ência, o científico, o técnico, o teórico, o prático, o moralista, não dão conta da laboração ao nível do existencial, não dão conta da existência, na projeta-tividade do possível e da possibilitação a ela imanentes.
Numa imagem ainda insuficiente, podemos dizer que a relação da ciência com a existência é análoga ao pegar em pétalas com luvas de siderúr-gica. O técnico constitui-se como uma acentuação, ainda, da discrepância. Na medida em que se confi-gura como aplicação do conhecimento científico.
Rogers entendeu isto claramente. E, ainda que não o tivesse articulado teoricamente, fez os movimentos decisivos para definir e constituir a prática da psicologia, da psicoterapia, da facilitação de grupos, no âmbito própria e especificamente da hermenêutica fenomenológico existencial. Diante das insuficiências e inespecificidades da ciência, da técnica e do moralismo, em relação à existência e ao processo de sua atualização.
Limitações e insuficiências na articulação teó-rica, ainda que carentes de superação, não impediram Rogers, não obstante, de experimentar amplamente, ao nível da prática empírica, o modo de privilegiamento do pathos, a patética, peripatética, a ética, como modo de procedimento, de uma herme-nêutica fenomenológico existencial, no âmbito da psicologia, da psicoterapia e da facilitação de gru-pos.
Em particular porque este modo de procedi-mento é o modo próprio e hábil para que experimentalmente se possa engendrar respostas para questões sobre “o que é que esta pessoa pode?” “O que é que pode este grupo?” “O que podem os seus participantes?” “O que posso eu...”
Na medida em que descobrimos e redesco-brimos que é ao modo de ser de uma
ex peri path ética que o possível -- que nossa atualida-de existencial reivindica, solicita, ou desesperadamente demanda – que o possível é efe-tivamente possível, e se desdobra. Possibilita-se.
Temos a descortinar-se diante de nós os pri-mórdios e toda uma história possível, teórica e prática, teórica e empírica, poiético empírica, da psi-cologia, da psicoterapia, e da facilitação de grupos, pertinente a um paradigma peripatético, um para-digma fenomenológico existencial hermenêutico.
E temos a saudar, efetivamente, um grande e sincero pioneiro, com suas ousadas experimenta-ções. O Dr. Carl R. Rogers, um membro distinto da “confraria” dos patéticos, empatéticos, peripatéticos...